Kiriku e a feiticeira é um longa metragem de animação baseado em uma lenda africana. Dirigido por Michel Ocelot que nasceu na França, mas foi morar em Guiné, África, com seis anos onde foi fortemente influenciado pela cultura local. Em entrevista para a Folha diz: "Minha feliz criação na Guiné alargou minha mente. Estive em contato com cinco diferentes religiões. Até os 12 anos, durante a escola, eu era negro; durante as férias de verão, era branco de novo". Essa maravilhosa experiência rendeu trabalhos de igual valor. Uma leitura demorada, atenta e sensível dessa outra cultura. Entre suas obras estão também "Azur e Asmar", que discute o preconceito e as diferenças a partir da história de dois irmãos, um branco e um negro.
O filme já inicia de uma forma interessante: Kiriku exige nascer. Sua mãe retruca que uma criança que pede para nascer pode nascer sozinha, ele, então, nasce. Toma banho e se intera da desgraça que assola sua aldeia. Uma feiticeira chamada Karabá devorou seu pai e quase todos os outros homens da vila, secou a fonte que abastecia os moradores e ameaça mulheres e crianças. Mas Kiriku, um garoto diminuto, curioso e questionador do mundo à sua volta, não aceita as coisas assim tão simples. Ele quer saber por que Karabá é malvada. Corajoso decide enfrentá-la e nessa aventura descobre muitos detalhes ainda desconhecidos da história e que para todas as coisas existe uma explicação.
Kiriku e a feiticeira oferece às crianças uma nova maneira de olhar para vida. Totalmente diferente do que elas têm acesso via cinema, que não costuma divergir muito do padrão Disney (referencial americano). Não em sua história, que é essencialmente a mesma de todo clássico - um mocinho que enfrenta o mal para salvar sua comunidade e acaba com uma princesa - mas na suas formas estéticas, musicais e nas representações naturais. Esteticamente podemos destacar o desenho da figura humana que valoriza características negras, a beleza negra, as formas de se enfeitar desse povo; a luz e as cores que tentam nos aproximar do que é, de fato, estar naquele cenário. As músicas se utilizam de instrumentos típicos da cultura africana e são colocadas não como fundo para cenas, mas nos momentos em que se costuma fazer uso dela naquela cultura, ou seja, nas comemorações de colheita, de nascimento e na morte. Existe uma preocupação com a verdade, com os detalhes das plantas, da vida animal. Os animais não falam. Existe uma relação homem/ animal onde nenhum deles tem que mudar para que esse encontro aconteça, mostrando a possibilidade de uma vida em harmonia com a natureza.
Além disso, valores dessa cultura retratados no enredo, nas personagens e em suas relações merecem destaque por nos ajudar a refletir sobre nós mesmos. É olhando para o que é outro que podemos nos entender e aprender.
Em primeiro lugar o valor da vida. Da vida nova, que representa esperança. No filme é como se Kiriku fosse um deus, porque nasce falando e é capaz de fazer coisas que uma criança não é capaz de fazer sozinha. É ele quem liberta seu povo da opressão da ignorância. Ser símbolo de esperança é diferente de, como discute Fulvia Rosemberg, um “vir a ser”, uma promessa, possibilidade de realização de ideais não atingidos, comum em sociedades centradas no adulto, concepção que temos tentado combater. Ter uma criança como símbolo de esperança é acreditar nela como capaz também, de com seu olhar, elaborar formas próprias de pensar e porque não, formas que possam apontar para um novo horizonte. Arroyo leva a questão para o âmbito escolar, dizendo: “não queremos a escola para um dia ser... em nome de um dia ser, não deixamos que a criança seja no presente”. No filme uma cena em especial nos ensina essa lição. “O jovem Kiriku é incentivado pelo avô a ser criança enquanto é criança, e sentir-se feliz por isso, e ser adulto quando for e sentir-se feliz por isso”.
A mulher. A mulher é forte e é delicada. Na tribo a mulher tem seu papel, a sua importância. Na ausência do homem ela dá conta de tudo. O "mal" também é representado por uma mulher; O velho é o sábio. Aquele que pode falar do que já aconteceu. Orientar. É querido e importante; A noção de família, de comunidade. De pessoas implicadas numa realidade e que se responsabilizam umas pelas outras;
Essas vozes que durante muito tempo foram socialmente valorizadas e que perderam espaço na modernidade para o discurso científico, reconhecido hoje como verdade absoluta. No entanto, o que observamos é uma multiplicação de conflitos de que esse discurso não dá conta. Novamente, Rosemberg vem atentar sobre a necessidade de reconsiderar essas vozes. Abramowicz também aponta nessa direção quando diz que nessas linhas de exclusão - ‘os mais pobres, os negros, as crianças pequenas’ - pode haver fragmentos de exterioridade. Suas “linguagens e seus sentidos estão mais separados da teoria do poder”.
Não ousaria dizer que se trata de um filme infantil simplesmente. É um infantil sim porque, como diz o próprio Ocelot se referindo as crianças: "Elas estão aqui para aprender, inclusive coisas que ainda não entendam direito". Mas é também adulto, muito adulto, pois discute valores que estão nas bases de nossa cultura, que vem perdendo espaço gradativamente nas nossas relações e que merecem ser revisitados como possíveis estratégias de contorno para situações de conflitos cada vez mais frequentes no nosso cotidiano.
Verônica Fonseca
O filme já inicia de uma forma interessante: Kiriku exige nascer. Sua mãe retruca que uma criança que pede para nascer pode nascer sozinha, ele, então, nasce. Toma banho e se intera da desgraça que assola sua aldeia. Uma feiticeira chamada Karabá devorou seu pai e quase todos os outros homens da vila, secou a fonte que abastecia os moradores e ameaça mulheres e crianças. Mas Kiriku, um garoto diminuto, curioso e questionador do mundo à sua volta, não aceita as coisas assim tão simples. Ele quer saber por que Karabá é malvada. Corajoso decide enfrentá-la e nessa aventura descobre muitos detalhes ainda desconhecidos da história e que para todas as coisas existe uma explicação.
Kiriku e a feiticeira oferece às crianças uma nova maneira de olhar para vida. Totalmente diferente do que elas têm acesso via cinema, que não costuma divergir muito do padrão Disney (referencial americano). Não em sua história, que é essencialmente a mesma de todo clássico - um mocinho que enfrenta o mal para salvar sua comunidade e acaba com uma princesa - mas na suas formas estéticas, musicais e nas representações naturais. Esteticamente podemos destacar o desenho da figura humana que valoriza características negras, a beleza negra, as formas de se enfeitar desse povo; a luz e as cores que tentam nos aproximar do que é, de fato, estar naquele cenário. As músicas se utilizam de instrumentos típicos da cultura africana e são colocadas não como fundo para cenas, mas nos momentos em que se costuma fazer uso dela naquela cultura, ou seja, nas comemorações de colheita, de nascimento e na morte. Existe uma preocupação com a verdade, com os detalhes das plantas, da vida animal. Os animais não falam. Existe uma relação homem/ animal onde nenhum deles tem que mudar para que esse encontro aconteça, mostrando a possibilidade de uma vida em harmonia com a natureza.
Além disso, valores dessa cultura retratados no enredo, nas personagens e em suas relações merecem destaque por nos ajudar a refletir sobre nós mesmos. É olhando para o que é outro que podemos nos entender e aprender.
Em primeiro lugar o valor da vida. Da vida nova, que representa esperança. No filme é como se Kiriku fosse um deus, porque nasce falando e é capaz de fazer coisas que uma criança não é capaz de fazer sozinha. É ele quem liberta seu povo da opressão da ignorância. Ser símbolo de esperança é diferente de, como discute Fulvia Rosemberg, um “vir a ser”, uma promessa, possibilidade de realização de ideais não atingidos, comum em sociedades centradas no adulto, concepção que temos tentado combater. Ter uma criança como símbolo de esperança é acreditar nela como capaz também, de com seu olhar, elaborar formas próprias de pensar e porque não, formas que possam apontar para um novo horizonte. Arroyo leva a questão para o âmbito escolar, dizendo: “não queremos a escola para um dia ser... em nome de um dia ser, não deixamos que a criança seja no presente”. No filme uma cena em especial nos ensina essa lição. “O jovem Kiriku é incentivado pelo avô a ser criança enquanto é criança, e sentir-se feliz por isso, e ser adulto quando for e sentir-se feliz por isso”.
A mulher. A mulher é forte e é delicada. Na tribo a mulher tem seu papel, a sua importância. Na ausência do homem ela dá conta de tudo. O "mal" também é representado por uma mulher; O velho é o sábio. Aquele que pode falar do que já aconteceu. Orientar. É querido e importante; A noção de família, de comunidade. De pessoas implicadas numa realidade e que se responsabilizam umas pelas outras;
Essas vozes que durante muito tempo foram socialmente valorizadas e que perderam espaço na modernidade para o discurso científico, reconhecido hoje como verdade absoluta. No entanto, o que observamos é uma multiplicação de conflitos de que esse discurso não dá conta. Novamente, Rosemberg vem atentar sobre a necessidade de reconsiderar essas vozes. Abramowicz também aponta nessa direção quando diz que nessas linhas de exclusão - ‘os mais pobres, os negros, as crianças pequenas’ - pode haver fragmentos de exterioridade. Suas “linguagens e seus sentidos estão mais separados da teoria do poder”.
Não ousaria dizer que se trata de um filme infantil simplesmente. É um infantil sim porque, como diz o próprio Ocelot se referindo as crianças: "Elas estão aqui para aprender, inclusive coisas que ainda não entendam direito". Mas é também adulto, muito adulto, pois discute valores que estão nas bases de nossa cultura, que vem perdendo espaço gradativamente nas nossas relações e que merecem ser revisitados como possíveis estratégias de contorno para situações de conflitos cada vez mais frequentes no nosso cotidiano.
Verônica Fonseca
ARROYO, Miguel. O significado da infância, Criança: revista do professor de educação infantil, Brasília, 1995, nº28, p 17- 21.
ABRAMOWICZ, Anete. Direito das crianças a educação infantil. Pro-Posições. Dossiê: Educação Infantil e gênero, v. 14, n. 3, (42), p. 13- 24, 2003.
ROSEMBERG, Fulvia. Educação para quem? Ciência e Cultura (SBPC), v. 28, n. 12, p. 66- 71, 1978.
GUATARRI, Felix. As creches e a iniciação. In: GUATARRI, Felix. Revolução molecular. São Paulo: Brasiliense, 1977, p. 50 – 55.
Kirikou et la Sorcière, França, 1998